A FÓRNEA



O anfiteatro natural da Fórnea de Alcaria
O anfiteatro natural da Fórnea de Alcaria


A água da CHUVA, as EXSURGÊNCIAS, os caudais das RIBEIRAS, os DEGELOS, as FALHAS geológicas e o TEMPO ...  podem moldar a paisagem de um planalto calcário.

Entre as povoações de Chão das Pias e Alcaria, a Mãe Natureza arquitectou um cenário magnífico, que constitui um dos locais mais emblemáticos do Maciço Calcário Estremenho: A FÓRNEA.

Os habitantes locais chamaram-lhe Fôrnea por se assemelhar a um forno, mas Fórnea (Reculée) é o nome científico para "um recuo pronunciado em forma de anfiteatro, de uma zona baixa para dentro de um planalto calcário".


Percurso pedestre de Alcaria ao  anfiteatro da Fórnea
Percurso pedestre de Alcaria ao
anfiteatro da Fórnea

Neste local majestoso, integrado no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, é possível fazer-se uma viagem de 20 milhões de anos no tempo geológico, desde o final do Jurássico inferior até ao Jurássico médio.

Durante esse período este local era completamente diferente do que é hoje! Fazia parte de uma vasta área, de topografia suave, que se estendia desde a região do Porto à Arrábida, ao longo da orla ocidental do Maciço Ibérico e que, durante o Jurássico, foi invadida por um  mar epicontinental - a Bacia Lusitaniana.

Ao longo de milhões de anos, camadas e camadas de sedimentos acumularam-se debaixo dessas águas calmas e quentes, dando origem a rochas carbonatadas, rochas essas que hoje se encontram expostas, devido à acção de forças tectónicas que elevaram o Maciço Calcário Estremenho, no final do Miocénico (~ 11 milhões de anos).



Ribeiro de Fórnea
Caminho paralelo ao Ribeiro de Fórnea


Iniciamos a nossa visita à Fórnea pela sua base.
Na estrada que liga Porto de Mós a Minde chegamos à povoação de Zambujal de Alcaria,  onde uma seta assinala o percurso pedestre da Fórnea.  
O caminho, paralelo ao curso do Ribeiro da Fórnea,  é feito pelo meio de um olival, um dos poucos vestígios da intervenção humana na paisagem.
Este troço do percurso, entalhado entre as escarpas da Costa de Alvados e do Castelo de Alcaria, está assente nos estratos sedimentares da Formação de Fórnea.


Rumo ao anfiteatro


Esta formação, tem um carácter regional, sendo equivalente ao conjunto das formações de Vale de Fontes, Lemede e S. Gião, representadas na generalidade da Bacia Lusitaniana.
Constituída por margas, calcários margosos e calcários micriticos em geral muito fossilíferos, a Formação de Fórnea aflora ao longo de uma estreita faixa junto à Costa de Alvados, até às imediações da povoação de Ribeira de Cima (Porto de Mós).


Formação de Fórnea
A Formação de Fórnea aflora  numa estreita faixa ao longo escarpa
da Costa de Alvados (à direita)

Formação de Fórnea
No vale entalhado entre as escarpas da Costa de Alvados e do Castelo de Alcaria
aflora a Formação de Fórnea.


Os níveis da base encontram-se em zonas de falhas tectónicas, e não são visíveis no terreno. Poderão pertencer ainda à parte terminal do Sinemuriano (~190 Ma), mas os dados biostratigráficos actualmente disponíveis apontam para a base do Pliensbaquiano, Biozona Jamesoni.


Amonite na Formação de Fórnea (Jurássico inferior)
Amonite na Formação de Fórnea (Jurássico inferior)

Amonite na Formação de Fórnea (Jurássico inferior)
Amonites na Formação de Fórnea (Jurássico inferior)

Amonite na Formação de Fórnea (Jurássico inferior)
Grande amonite na Formação de Fórnea (Jurássico inferior)


O seu limite superior foi estabelecido pelo registo paleontológico de associações de amonites, definido pelo aparecimento das primeiras amonites Leioceras opalinum, que indicam a base do Aaleniano - Biozona Opalinum, (Sub-zona Opalinum) (~180 M.a.), o primeiro andar do Jurássico médio.

Esta formação  ter-se-á depositado num ambiente marinho aberto (rampa externa) e nela podem-se encontrar vários fósseis como amonites, belemnites mas também braquiópodes e bivalves.


Pectinideo na Formação de Fórnea
Pectinideo na Formação de Fórnea

Pectinideo na Formação de Fórnea
Pectinideo na Formação de Fórnea


Continuando o percurso chegamos ao magnífico anfiteatro natural da Fórnea.
Com cerca de 500 m de diâmetro  e 200 m de altura, as suas vertentes lembram degraus escavados na rocha, os balcões de um anfiteatro, ou até bancadas de um estádio de futebol.


cascalheiras numa das vertentes da Fórnea
Os "degraus" e as cascalheiras numa das vertentes da Fórnea


Cada degrau destas vertentes, também conhecidas por Barranco do Zambujal, corresponde a uma página da história  geológica do nosso país. Este é o local-tipo da formação com o mesmo nome, a Formação do Barranco do Zambujal.


Estratos calcários do Jurássico médio
Estratos calcários do Jurássico médio

Estratos calcários do Jurássico médio
Estratos calcários do Jurássico médio

Estratos da Formação do  Barranco do Zambujal
Estratos da Formação do
Barranco do Zambujal


O limite inferior desta formação corresponde à primeira ocorrência das amonites Cypholioceras comptum (Biozona Opalinum, Subzona Comptum) do Aaleniano Inferior.
O limite superior encontra-se acima das últimas amonites da Biozona Sauzei, que corresponde ao topo do Bajociano inferior (~169 Ma).
O seu tipo de rochas (margas, calcários margosos e calcários argilosos) e a macrofauna abundante (amonites, belemnites, braquiópodes, bivalves e gastrópodes), indicam que foi formada num ambiente de mar aberto (rampa externa).


Limite da vertente sul da Fórnea
Limite da vertente sul da Fórnea


Ao longo do caminho, na base da vertente sul, deparamos com enormes blocos caídos compostos por fragmentos de pedras calcárias. Estes detritos angulosos - os crioclastos - são resultado da  meteorização física das rochas, causada por baixas temperaturas. 
Durante os tempos mais frios do Quaternário, a água contida nos poros e nas fissuras do calcário gelou e, como o gelo ocupa mais volume do que a água que lhe deu origem, as pressões exercidas levaram à fracturação dos mesmos.


Depósitos de crioclastos Fórnea
Depósitos de crioclastos
envoltos em matriz


A mesma origem periglacial  têm as cascalheiras, que formam impressionantes depósitos de vertente ao longo das encostas do vale, parecendo-se com cascatas de pedra.
A acção conjunta do frio e da neve também terão contribuído na moldagem desta obra da natureza.


Cascalheira
Cascalheira -  heranças de um clima muito frio

Cascalheiras Fórnea
Cascalheiras 


Subindo o caminho pedestre chegamos a uma das principais nascentes da Fórnea - a Gruta da Cova da Velha. 
Existem outras nascentes, dispostas de forma circular nas encostas do anfiteatro, todas de carácter temporário, secando no Verão mas exibindo cascatas espectaculares em épocas de muita chuva, que vão alimentar o Ribeiro da Fórnea. 


Gruta da Cova da Velha
Gruta da Cova da Velha

Gruta da Cova da Velha
Vertente norte da Fórnea
vista da Gruta da Cova da Velha


Estas nascentes, ou melhor, estas exsurgências,  não são mais do que locais onde a água, armazenada em cursos de água subterrâneos, volta à superfície. São consideradas as principais responsáveis pelo formato deste vale, escavando e erodindo regressivamente as rochas e causando o recuo das cabeceiras das linhas de água.

A Gruta da Cova da Velha  é das exsurgências mais elevadas da Fórnea e a que apresenta  maior caudal. Visitável apenas na sua parte inicial, esta gruta desenvolve-se horizontalmente ao longo de 1,5 kilómetros.


A cascata da Fórnea
mais espectacular depois de muita chuva

A cascata da Fórnea

Ribeiro da Fórnea
O Ribeiro da Fórnea, que comporta um caudal considerável em períodos de muita chuva ...
 no Verão apresenta-se seco, mas não menos interessante


Para quem não faz questão de continuar a subir as vertentes íngremes da Fórnea, existe um outro acesso apartir do topo, na localidade de Chão das Pias, no alto do Planalto de Santo António. 
Um  caminho curto e  pouco íngreme termina abruptamente nos últimos degraus do anfiteatro. Aqui a paisagem é de cortar a respiração.


Fórnea de Alcaria
Vertente norte


Chão das Pias  localizada numa depressão (uvala)
A povoação de Chão das Pias
localizada numa depressão (uvala)


Fórnea - Parque Natural das Serras Aire e Candeeiros
Vertente sul


As camadas sedimentares do topo da Fórnea  datam do inicio do Bajociano Superior e fazem parte da base da Formação de Chão das Pias que sucede em continuidade a formação anterior.
Esta formação apresenta na base calcários argilosos com fauna de ambiente marinho franco - Calcários de Vale da Serra - mas para o topo torna-se dolomítica - Dolomitos do Furadouro - apresentando fácies de pequena profundidade,  que testemunham uma diminuição do nível das águas do mar.


Formação de Chão das Pias
A povoação de Chainça assenta nas camadas sedimentares
da Formação de Chão das Pias


O topo da Fórnea
O topo da Fórnea


Apesar de abundância de fósseis, sobretudo nas duas primeiras formações, estes são difíceis de detectar devido à abundância de vegetação que cobre as lajes. 
Por vezes, pequenos fragmentos de amonites e belemnites espreitam em pedaços de rochas nuas, exibem-se nas pedras empilhadas dos chousos, ou perdem-se nas encostas em amontoados de blocos caídos.


Amonite em chouso
Amonite em chouso

Amonite em bloco
Amonite em bloco

Existe no entanto um lugar privilegiado para se observar e comprovar a existência, neste local, destes habitantes dos mares do Jurássico: o chamado "Trilho das Amonites".  


Trilho das Amonites
O  "Trilho das Amonites"

Trilho das Amonites
"Trilho das amonites"

Trilho das Amonites - PNSAC
Impressão deixada no local onde a amonite fossilizou


Situado num barranco a Norte do anfiteatro da Fórnea, este trilho assenta numa laje calcária a descoberto, onde se podem encontrar, maioritariamente, marcas nos locais onde os amonóides fossilizaram e não os fósseis própriamente ditos.
A laje que sustenta o trilho das amonites pertence à Formação de Barranco do Zambujal.


Trilho das Amonites
Impressão de amonite
no "trilho das amonites"

Trilho das Amonites
Impressão de amonite
no "trilho das amonites"

Trilho das Amonites
Parte de fóssil de amonite


E vale a pena a caminhada já que os nossos sentidos se enchem com os cheiros dos funchos e das ervas aromáticas, do som do silêncio cortado pelo vento, da paisagem imensa que chega até onde a vista alcança.


Ferula communis
Canafrecha
Ferula communis (subsp. catalaunica)
Endémica da Peninsula Ibérica, prefere solos de origem calcária

Iberis procumbens
Assembleias
Iberis procumbens (subsp. microcarpa)
Endémica de Portugal e adaptada a solos calcários

Lapa da Mouração no cimo do Castelo de Alcaria
Lapa da Mouração no cimo do Castelo de Alcaria


À nossa frente, no alto da escarpa de falha do Castelo de Alcaria, encontra-se uma das muitas grutas naturais do maciço calcário - a Lapa da Mouração - onde foram encontrados artefactos de pedra polida e cerâmica. 
Esses vestígios arqueológicos, que datam do Neolítico/Calcolítico e da época Romana, apontam para a existência de um povoado primitivo. 


Castelo medieval de Porto de Mós
O Castelo medieval de Porto de Mós
espreita por entre os calcários do Jurássico


Lá em baixo o Vale do Lena que,  devido às suas várias nascentes temporárias, permite-se a uma vegetação mais luxuriante. 
À esquerda, o Castelo de Porto de Mós, com os seus verdes coruchéus, destaca-se no meio do aglomerado urbano. 
Do lado oposto, consegue-se perceber como as depressões de Alvados e de Minde, separam o Planalto de Santo António, do Planalto de São Mamede e da Serra de Aire.


depressão de Alvados
A depressão de Alvados separa o planalto de Santo António (à direita)
do Planalto de São Mamede (à esquerda)
Em último plano a Serra de Aire.

Serra dos Candeeiros
A povoação de Ribeira de Cima a norte da Depressão da Mendiga
e a ponta norte da Serra dos Candeeiros


Seguindo mais para norte, um trilho leva-nos à ponta final do Planalto de Santo António. 
Dali é possível contemplar mais uma característica geomorfológica do Maciço Calcário Estremenho - o inicio da Depressão da Mendiga - que separa o Planalto de Santo António da Serra dos Candeeiros.

Em dias de céu límpido é possível avistar o relevo da Serra da Boa Viagem, que abraça a cidade da Figueira da Foz.




CLIQUE NA IMAGEM EM BAIXO 
E ASSISTA AO NOSSO VÍDEO SOBRE AS RUÍNAS ROMANAS DE TRÓIA 
NO YOUTUBE








Azerêdo, Ana. (2007). Formalização da litostratigrafia do Jurássico Inferior e Médio do Maciço Calcário Estremenho (Bacia Lusitânica). Comunicações Geológicas. 94. 29-51.

Henriques, Maria. (2015). Aalenian of the Zambujal de Alcaria section (Central Lusitanian Basin; Portugal). GeoResearch Forum. 6. 85-94. 

Património Geológico de Portugal - Barranco do Zambujal


geoPortal do LNEG - carta geológica de portugal 1:50 000 - Folha 27-A Vila Nova de Ourém

flora-on - Sociedade Portuguesa de Botânica

Comentários

Enviar um comentário