Cobras pintadas e icnofósseis, em Penha Garcia

 

Foi povoado neolítico, castro lusitano e povoação romana. Fez parte da defesa estratégica do reino nos primeiros anos da sua existência, foi terra de Templários, couto do reino e dos homiziados. Por aqui  passaram garimpeiros e do contrabando procurou-se melhor vida.  

É obrigatório subir a encosta para conhecer a penha de D. Garcia, alcaide da terra que, segundo a lenda, após raptar a filha do governador de Monsanto, foi capturado, livrou-se da morte mas foi condenado a ficar sem um braço. 

Dizem as gentes da terra que o fantasma de D. Garcia, “o decepado”, divaga ainda pelas ruas da aldeia.


Pelourinho e casas tradicionais
Penha Garcia

Ao subirmos as ruas sinuosas e íngremes, ficamos rendidos aos encantos desta aldeia beirã, com as tradicionais casinhas feitas de blocos de rocha dura - os quartzitos, intercaladas com pequenas lajes de xisto e unidas por argamassa.

O Pelourinho, datado do reinado de D. Sebastião e símbolo do poder concelhio, a igreja Matriz e, lá no alto, o que resta do Castelo medieval, mandado construir possivelmente por ordem de D. Sancho I. 

Castelo de Penha Garcia

É aqui, no alto da penha que se perde a respiração, não tanto pela subida mas pela impressionante paisagem.

Lá em baixo, um vale em forma de canhão, estreito e profundo, escavado pelo rio Ponsul nos últimos 2 milhões de anos, corta a crista quartzítica em belas vertentes escarpadas. 

Vale do rio Ponsul
Penha Garcia

Complexo moageiro de Penha Garcia
Vale do rio Ponsul

O percurso sinuoso do rio foi durante séculos aproveitado pelas gentes da terra para a moagem de cereais, e desse tempo restam os moinhos de rodízio, que foram restaurados e são um orgulho dos habitantes da aldeia.

Complexo moageiro de Penha Garcia


Complexo moageiro de Penha Garcia


Mas o maior tesouro de Penha Garcia são os seus fósseis, ou melhor, os seus icnofósseis!


Icnofósseis de Penha Garcia


Os icnofósseis não são mais do que as marcas fossilizadas da actividade biológica que organismos do passado produziram enquanto vivos. 

Ao se locomoverem, ao se alimentarem, ao escavarem as suas tocas, ao se reproduzirem ou mesmo ficando em repouso, os seres vivos deixam marcas no substrato. 

Ao fossilizarem no mesmo local em que foram produzidos, os icnofósseis são instrumentos importantes para se conhecer o tipo de ambiente, como os organismos se deslocavam, o comportamento social e até mesmo algumas características anatómicas.

Icnofósseis de Penha Garcia

Em Penha Garcia, os icnofósseis revelam como era a vida num fundo marinho há cerca de 490 Ma. 

Nesse tempo, o nosso planeta era completamente diferente daquele que hoje conhecemos.

Os continentes encontravam-se todos perto do Pólo Sul, e um enorme oceano ocupava grande parte do planeta. A Península ibérica, situada na margem NW do grande supercontinente Gondwana, encontrava-se submersa por um mar pouco profundo - o jovem oceano Rheic, que começava a expandir-se.

Foi nessas zonas litorais, por vezes turbulentas e assoladas por fortes tempestades, que viveram os organismos marinhos que produziram os icnofósseis de Penha Garcia.

Marcas de ondulação (Ripple marks)
Penha Garcia
(resultam da acção das correntes sobre as areias em zonas de pouca profundidade)


Fendas de sinérese em Penha Garcia
(formam-se por diminuição do volume das areias, devido à saída da água salgada causada pela chegada de água doce) 


Em Penha Garcia, podem-se observar vários tipos de icnofósseis, como as galerias de habitação de vermes que viviam enterrados no fundo marinho, entre as quais galerias verticais, em forma de U, ou estranhas galerias tridimensionais em forma de J produzidas por vermes de origem desconhecida.

Icnofósseis de Penha Garcia

Mas os icnofósseis mais relevantes de Penha Garcia foram produzidos por seres extintos há cerca de 250 Ma - as trilobites. 

Cruziana - Penha Garcia

Estes animais, pertencentes ao grupo dos artrópodes, tinham um duro esqueleto externo e o corpo dividido em três secções principais: o cefalão com olhos, aparelho bucal e antenas, o tórax articulado e com múltiplos apêndices e o pigídio ou escudo caudal.  

O nome "trilobite" que significa três lobos, baseia-se no entanto nos três lobos longitudinais que compunham a sua região dorsal.

Cruziana - Penha Garcia

Icnofósseis de Penha Garcia


Para se alimentarem, as trilobites deslocavam-se lentamente pelos sedimentos do fundo marinho, escavando-o e revolvendo‐o em busca de matéria orgânica que lhes servia de alimento, deixando marcas nos sedimentos argilosos mais profundos. 

A essas marcas fossilizadas foi atribuído o género de icnofóssil Cruziana (*), chamadas pela população local de Cobras pintadas, motivo de lendas de princesas mouras e de tesouros.

Cruziana - Penha Garcia


Cruziana - Penha Garcia

As Cruziana aparecem nas camadas de rocha quartzítica sob a forma de relevo, o que significa tratar-se de contramoldes, ou seja a camada de sedimentos que preencheram as cavidades deixadas pelos seus produtores. 

Nestas pistas fossilizadas e o que se pode ver são dois lobos salientes (convexos) separados por um sulco central, de onde muitas vezes partem estrias em V, as marcas de arranhamento dos apêndices locomotores.  

Icnofósseis de Penha Garcia


Cruziana - Penha Garcia

Nas magníficas camadas de quartzito que compôem o Parque Icnológico de Penha Garcia, pode-se observar imensas Cruziana,  algumas delas as maiores e das mais bem preservadas que se conhecem a nível mundial.

As suas voltas e contravoltas, ramificações e ondulações, indiciam que as trilobites tinham comportamentos diversos durante a sua busca por alimento.

Cruziana - Penha Garcia


Mas estes antigos artrópodes também deixaram marcas de repouso, impressões bi-lobadas, com forma de grão de café, ou marcas de locomoção onde o que se vê são as marcas dos apêndices ao se deslocarem ao longo do substrato.

Icnofósseis de Penha Garcia



Camadas de rocha quartzítica quase na vertical
Penha Garcia


As magníficas camadas de rocha quartítica, algumas quase na vertical, que podemos ver hoje no bonito vale do Ponsul, têm origem, como já dissemos, em sedimentos arenosos depositados a pouca profundidade, nas margens do ancestral oceano Rheic, em camadas paralelas e quase horizontais.

Parque Icnológico de Penha Garcia

Com o passar do tempo, esses sedimentos transformaram-se em rochas sedimentares coesas, os arenitos.

Há cerca de 300 Ma, os mares que separavam os continentes começaram a fechar e os continentes uniram-se formando uma única porção de Terra em todo o planeta - Pangea.

Dobra de arrasto
Penha Garcia

Estes eventos provocaram alterações nas rochas e os arenitos sofreram metamorfismo transformando-se em rochas metamórficas muito duras e resistentes - os quartzitos.

Além de metamorfismo, a colisão continental fez com que as rochas existentes fossem dobradas, fracturadas e soerguidas.

Dobra
Penha Garcia

É isso que podemos observar em Penha Garcia - areias que há 490-480 milhões de anos eram o fundo de um mar cheio de vida do polo sul, transformadas em belíssimas escarpas verticais onde, organismos que há muito se extinguiram, deixaram as marcas da sua actividade biológica, do seu comportamento e da adaptação às condições ambientais em que viviam.

Parque Icnológico de Penha Garcia

O Parque Icnológico de Penha Garcia está classificado e tem um estatuto de proteção legal com vista a salvaguardar o seu vasto património geológico, paleontológico, histórico e cultural.  Existe um percurso de cerca de 3 kms, PR3 - Rota dos Fósseis, devidamente sinalizado, que permite aos visitantes visitar o geomonumento em segurança. 

Os icnofósseis de Penha Garcia são uma das imagens de marca do Geopark Naturtejo da Meseta Meridional, junto da Rede Global de Geoparques reconhecidos pela UNESCO.



(*) - Os icnofósseis Cruziana  são marcas produzidas por trilobites ou outros seres com forma semelhante.


Bibliografia:







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