a VILLA onde CARDILIO e AVITA VIVERAM FELIZES

Mosaicos romanos de Villa Cardilio

Depois de Troia e do Creiro onde visitámos as fábricas de preparados de peixe, é agora altura de abordarmos um outro tipo de centro produtivo romano - as villae

É na região do Médio Tejo, numa área em que as rochas calcárias da Serra de Aire se elevam sobre a planície fértil do Tejo, que se encontra a villa que hoje apresentamos - Villa Cardilio.

Ruínas romanas de Villa Cardilio
vista geral

Localizada perto de dois importantes centros urbanos - Scallabis (Santarém) e Sellium (Tomar) - e muito próximo de uma das principais vias militares romanas – a Vía XVI (que ligava Olisipo a Bracara Augusta), Villa Cardilio terá sido fundada no séc I.

As estruturas dessa construção inicial encontram-se por baixo da villa do séc. III-IV, que hoje podemos visitar perto da cidade de Torres Novas, e que foi classificada como Monumento Nacional em 1967.

Ruínas romanas de Villa Cardilio
vista geral

No séc. I, o mundo rural romano já estava largamente implementado na antiga província da Lusitânia.

Algumas villae e “casais”, residências de agricultores de menor escala, estariam localizadas próximo de recintos-torre e de fortins, estruturas que começam agora a ser descobertas e estudadas, não se sabendo ao certo se teriam carácter militar ou civil.
Muitas dessas residências rurais viriam a tornar-se grandes e ostentosas casas senhoriais, que nem em tamanho nem em luxo ficavam atrás das grandes casas urbanas - as domus.

Tapetes de mosaico de Villa Cardilio
no chão do átrio (peristylum)

Pormenor de um dos tapetes de mosaico do átrio (peristylum)
de Villa Cardilio

Pormenor de um dos tapetes de mosaico do átrio (peristylum)
de Villa Cardilio

As villae, distribuíam-se geralmente perto de vias de comunicação, em áreas próximas dos centros urbanos e das cidades, preferencialmente onde houvesse abundância de água.
Numa região de terrenos muito férteis e com o  rio Almonda a correr mesmo ali ao lado, Villa Cardilio possuía a água necessária  para abastecer a parte residencial da casa - a pars urbana, com termas, tanques, fontes e jardins. Mas a preciosa água seria também essencial para a irrigação dos campos, para dar de beber aos animais e para consumo humano.

Tapete de mosaico de Villa Cardilio
no chão da entrada da casa (ostivm)

Na entrada principal da casa – o ostivm, um enorme tapete de mosaico dava as boas vindas ao visitante.
Nele estão os nomes e os rostos dos seus presumíveis proprietários, tornando-o num caso único entre os mosaicos da Lusitânia romana. 
Num dos painéis, pequenos cubinhos coloridos recriam os bustos de um homem e de uma mulher (CARDILIVM e AVITAM) vestidos à maneira romana, separados por uma foice e sobre dois vasos tombados.

Painel de mosaico com a representação
dos  bustos de Cardilio e Avita

Se só este painel chegasse para nos esclarecer sobre o que se produzia na villa, poderíamos chegar à conclusão de que aqui se semeavam cereais e se produzia vinho, representados pela foice e pelos vasos, respectivamente. 
Mas tal como na maioria das villae em Portugal, também aqui ainda não foram descobertas as estruturas de apoio à produção. Falamos de celeiros, armazéns e adegas, mas também de estábulos e manjedouras, moinhos, fornos, teares, etc., além das instalações para os trabalhadores, servos e até escravos. 
Em outros locais do mundo romano, já foram descobertos vestígios arqueológicos de edifícios quadrangulares, situados em pontos altos, que se destinavam ao armazenamento de cereais, as torres-silo.

Painel de mosaico onde constam os nomes
 Cardilivm e Avitam

Um outro painel do tapete da entrada exibe uma enigmática inscrição latina, que já teve inúmeras interpretações e infindáveis significados:

VIVENTES 
CARDILIVM 
ETAVITAM
 FELIXTVRRE

Mas quem eram Cardilio e Avita? 
Bem, além dos seus nomes pouco se sabe. Terão aqui vivido no séc IV e de acordo com a legenda seriam um casal feliz ou que proporcionava felicidade à sua villa de nome TVRRE?! 
Teria aqui existido um recinto-torre ou uma torre-silo que desse nome ao local?

O pátio ( peristylum) de Villa Cardilio


O pátio ( peristylum) de Villa Cardilio
com as colunas e a calha que rodeava o jardim

Passando a entrada principal, os visitantes da casa entravam num vasto pátio aberto, rodeado por 12 colunas - o peristylum.
Ao centro existiria um jardim, onde água límpida corria ao longo de uma calha, refrescando o ambiente, para depois jorrar nas fontes ornamentais que se supõe estivessem colocadas nos quatro semicírculos dispostos nos lados do recinto.
É ainda possível ver um poço revestido de alvenaria, com cerca de sete metros de profundidade.
 
Poço e pátio ( peristylum) de Villa Cardilio
visto de uma das divisões

À volta do pátio, lindíssimos tapetes de mosaico feitos com tesselas (opus tessellatum) revestem o pavimento. Esta técnica consiste em "forrar" o chão com pequenos cubos feitos de pedra, vidro ou cerâmica - as tesselas, de modo a formarem figuras ou desenhos geométricos.

Nós de Salomão são motivos frequentes
nos mosaicos de Villa Cardilio

Em Villa Cardílio os mosaicos de quadradinhos brancos, pretos, azuis, vermelhos e amarelos formam vários desenhos onde são frequentes as tranças e entrelaçados, os motivos vegetais, os nós de Salomão.
As cores e os motivos geométricos combinam na perfeição revelando o bom gosto dos proprietários da casa que eram os responsáveis pela escolha da decoração.

Pormenor de um dos tapetes de mosaico do átrio (peristylum)
de Villa Cardilio


Mosaicos do átrio (peristylum)
de Villa Cardilio
durante a fase de restauro

Graças a uma intervenção de limpeza, conservação e restauro levada a cabo este ano, é possível apreciar os tapetes de mosaico do átrio (peristylum), que para ficarem protegidos se encontravam tapados e, infelizmente vedados ao olhar de quem visitava a villa
E é bem visível a diferença entre o antes e o depois...

A sala de jantar - triclinium
de Villa Cardilio

A poente, o pátio dá acesso a outra ampla sala, cuja composição dos elementos do seu tapete de mosaicos  aponta para que fosse utilizada como a sala de jantar formal - o triclinium
Aqui, motivos mais simples onde domina o preto e o branco, conduzem a uma área central, ricamente decorada, onde se encontrariam três leitos, dispostos em forma de U, onde os romanos se reclinavam e tomavam as suas refeições.

Pormenor dos mosaicos da sala de jantar - triclinium
de Villa Cardilio

Pormenor dos mosaicos da sala de jantar - triclinium
de Villa Cardilio

Arcaria de tijolo para aquecimento
Villa Cardilio

Pode-se ainda ver como era feito o sistema de aquecimento dos pavimentos: uma arcaria de tijolo, onde circulava o ar aquecido pelas fornalhas, amornava o ambiente.

Arcaria de tijolo para aquecimento
Villa Cardilio

Mosaicos de Villa Cardilio

Nó de Salomão no centro de uma estrela de quatro pontas
Mosaicos de Villa Cardilio

Ruínas romanas de Villa Cardilio - lado norte

Viradas a norte, outras divisões para as quais de desconhece a utilização, também apresentam mosaicos no pavimento. Mais ao lado, existe um tanque ladeado por colunas de tijolo que se pensa ter sido o átrio de entrada da construção anterior.

Tanque ladeado por colunas
Villa Cardilio

Do lado nascente, uma ampla sala com forma semicircular é precedida por um pequeno pórtico rectangular flanqueado por seis colunas, das quais apenas subsiste uma base em mármore.

Exedra?
Villa Cardilio

Pela sua forma semicircular supõe-se que fosse uma exedra, um espaço destinado a encontros de negócios, reuniões, conversas ou apenas para receber os amigos.  
Nas casas romanas, essa divisão era luxuosamente decorada com mosaicos e frescos nas paredes e possuía assentos ao seu redor.
Em Villa Cardilio no entanto, e apesar das colunas em mármore, o pavimento não era revestido a mosaico mas sim a Opus signinum, uma mistura impermeável feita com cal, areia e pequenos pedaços de cerâmica.

Exedra?
Villa Cardilio

Pavimento em Opus signinum
Villa Cardilio

A oeste da villa estava a zona das termas, hoje muito destruída e praticamente irreconhecível. No entanto, foi possível identificar vestígios do sistema de aquecimento (hypocaustum) e da zona fria das termas (frigidarium), bem como de fornos e de tanques. 
Perto daqui, também possível ver parte do sistema de canalizações da villa.

Zona termal
Villa Cardilio

Cardilio e Avita seriam pois cidadãos abastados, talvez pertencessem à elite scalabitana onde teriam os seus negócios e rendimentos e viessem passar algumas temporadas ao campo… Ou será que aqui viviam e aqui recebiam os seus amigos, conhecidos e clientes? 
Seriam certamente pessoas cultas e de bom gosto, a avaliar pelo espólio recolhido neste local e nas imediações, que aponta para artigos importados como vinho, azeite e preparados de peixe, cerâmicas finas, vidros, bronzes, objectos de adorno e de uso pessoal, etc.

Ave e pato em bronze - Villa Cardilio
Museu Municipal Carlos Reis (Torres Novas)

Cabeça de loba em bronze - Villa Cardilio
Museu Municipal Carlos Reis (Torres Novas)

Foram, por exemplo, encontrados fragmentos de ânforas provenientes da Bética, entre as quais  ânforas usadas no transporte de azeite (oleárias), que sugerem que Cardilio e Avita eram apreciadores e consumidores do famoso e prestigiado azeite da antiga província romana do sul de Espanha.

Alfinete de toucado em marfim - Villa Cardilio
Museu Municipal Carlos Reis (Torres Novas)

Estatueta em barro - Villa Cardilio
Museu Municipal Carlos Reis (Torres Novas)

A quantidade de moedas do séc. II ao IV encontradas nas escavações, são um sinal da existência de trocas comerciais, e a grande quantidade de fragmentos de ânforas de vinho (vinícolas) fabricadas na Lusitânia, aponta para fosse produzido vinho neste local.

Parte do espólio encontrado em Villa Cardilio está em exposição em Torres Novas, no Museu Municipal Carlos Reis, que vale a pena visitar.

Moedas de bronze - Villa Cardilio
Honorio (esq) Diocleciano (centro) Majencio (dta)

Se a “TURRE” foi feliz enquanto viveram Cardílio e Avita, não podemos ter a certeza, mas certo é que a villa foi abandonada, possivelmente nos finais do século IV.

Apesar das ruínas terem sido descobertas na década de 30 do século passado, a villa serviu de local onde as pessoas vinham recolher pedras e outros materiais para as suas casas, libertando os campos de cultivo das “incómodas pedras”. 

Ao longo dos anos, as máquinas agrícolas continuaram a danificar  irremediavelmente as antigas construções, enquanto que eram levadas a cabo algumas escavações na tentativa de salvar algum do património ali existente.

Ruínas romanas de Villa Cardilio
vista geral

Ruínas romanas de Villa Cardilio

Villa Cardilio está actualmente a ser intervencionada e novas escavações estão a decorrer graças a um protocolo assinado entre a Câmara Municipal de Torres Novas e a UNIARC - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa. 
Quem sabe se novas peças serão acrescentadas a este puzzle. Talvez em breve voltemos a falar de Villa Cardilio.

Ruínas romanas de Villa Cardilio








Bibliografia:

Maria Filomena Barata, Maria Jesus Duran Kremer e Raquel Caçote Raposo.AlgumasVillae da Lusitânia Romana em território actualmente Português

Diogo, A. M. Dias; Monteiro, António J. Nunes. Ânforas romanas de «Villa Cardílio»: Torres Novas. Imprensa da Universidade de Coimbra

Carneiro, André (2010) Em Pars Incerta. Estruturas e dependências agrícilas nas villae da Lusitânia. Conímbriga, IAFLUC, vol. XLIX, p. 225-250.

Carneiro, André 2020: Povoamento rural na Lusitania. História de Roma. In: José Luís Brandão e Francisco Oliveira (coord.), Coimbra: IUC, vol. II, pp. 453-469

Conejo Delgado, Noé. (2017). Villa Cardilio (Torres Novas, Santarém): una revisión desde la Numismática. Portugalia: Revista de Arqueologia do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 38. 99-126. 10.21747/09714290/port38a4.

Fabiao, Carlos. (2020). As villae romanas da Lusitania ocidental: velhos problemas e novas abordagens.

JALHAY, Eugénio, Uma curiosa estatueta de barro, in Revista de Arqueologia, tomo II, fasc. VII, Lisboa, 1936

Kremer, Maria de Jesus Duran, "Mosaicos geométricos de Villa Cardílio. Algumas considerações", in Revista de História da Arte, n.º 6 (2008), pp. 61-77

Mataloto, Rui. Fortins e recintos-torre do Alto Alentejo: antecâmara da “romanização” dos campos

Santos, José Francisco Lúcio dos. Villa Cardíllio - contributo para a história da valorização de um sítio arqueológico

Links:

Direção-Geral do Património Cultural - Villa Cardilio

 


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